Merchandising Social: As Telenovelas e a Construção da Cidadania
Merchandising Social: As Telenovelas e a Construção da Cidadania
Prof. Dr. Marcio Ruiz Schiavo
INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
1. Introdução
“A ênfase em controle de qualidade tem sido da maior
importância. Não abrimos mão da nossa responsabilidade, da
ética, do compromisso com um Brasil melhor, que é a base de
ações como o Ação Global e o merchandising social e o Brasil
500 Anos”.
Marluce Dias da Silva,
Diretora Executiva da Rede Globo de Televisão
Neste trabalho, apresenta-se a evolução recente do merchandising social, trabalho realizado pela Comunicarte – Agência de Responsabilidade Social em aliança estratégica com a Rede Globo de Televisão e o Population Media Center (PMC). O merchandising social é a inserção sistematizada e com fins educativos de questões sociais nas telenovelas e minisséries. Com ele, pode-se interagir com essas produções e seus personagens, que passam a atuar como formadores de opinião e agentes de disseminação das inovações sociais, provendo informações úteis e práticas a milhões de pessoas simultaneamente – de maneira clara, problematizadora e lúdica. Ém 2001, computaramse 483 cenas socioeducativas nas oito telenovelas veiculadas pela Rede Globo. Malhação foi a que apresentou o maior número de cenas: 346. Mas, o grande destaque foi Laços de Família que, por meio do merchandising social, fez com que o número de doadores de sangue no Instituto de Hematologia passasse de 10 para 154 ao mês e o de doadores de medula no Instituto Nacional do Câncer (INCa), de 10 para 149 ao mês. A Comunicarte atua nesse campo desde 1991, quando foi fundada. Numa fase inicial, fez-se um profundo diagnóstico da área em que se pretendia atuar; estabeleceramse os contatos iniciais com o Population Communications International (PCI) e a Rede Globo; foram definidos os princípios éticos a serem seguidos no trabalho, as suas diretrizes gerais e os principais mecanismos e instrumentos a serem empregados. A segunda fase caracterizou-se pelo pioneirismo e, conseqüentemente, enfrentaram-se as dificuldades naturais surgidas do próprio ineditismo do trabalho proposto. Superadas as principais dificuldades, seguiu-se a fase de sistematização e consolidação metodológica dessa estratégia de socioeducação, cujo fato mais significativo foi a legitimação do merchandising social nos principais círculos acadêmicos brasileiros como das mais poderosas ferramentas de pedagogia social . Finalmente, a partir do início de 1999, com o pleno reconhecimento e aceitação do merchandising social pelos mais altos escalões decisórios da Rede Globo de Televisão, juntamente com a aliança social estratégica estabelecida com o Population Media Center (PMC) e a Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI), criaram-se as condições requeridas para que este trabalho entrasse em sua quarta fase – a do pleno amadurecimento. Desde já, dois aspectos se destacam. Em primeiro lugar, nota-se uma uma sensível melhoria na qualidade dos serviços informativos e de consultoria prestados à Rede Globo e às demais organizações que participam do trabalho. Em segundo lugar, os níveis mais elevados de eficácia, eficiência e efetividade das ações e cenas de merchandising social veiculadas de meados de 1999 para cá, o que pode ser comprovado pelos excelentes resultados obtidos em 2001.
2. Responsabilidade Social na TV
“Eu penso que num país onde as instituições são, ainda, tão
frágeis e onde não temos uma sociedade civil suficientemente
organizada para reivindicar os seus direitos, nossas
responsabilidades como autores de novelas vão além da
simples diversão”.
Glória Perez,
Autora de O Clone (Rede Globo, 20:30hs)
Um aspecto relevante na evolução do merchandising social é o tratamento das questões sociais abordadas, que não se limita a mostrar os problemas: além de enfatizar as alternativas de solução, indicam-se estratégias de ação simples, eficazes e de fácil aplicação pelos telespectadores em seu cotidiano. Neste contexto, também se destacam a variedade e natureza das questões abordadas. Desde o início das atividades, a Comunicarte vem dando prioridade aos temas de sexualidade, saúde sexual e reprodutiva, saúde preventiva, relações de gênero e outras questões relacionadas aos direitos de cidadania e aos direitos das crianças, adolescentes e jovens. Também tem procurado abordar com freqüência questões em relação às quais a sociedade brasileira tem-se mostrado cada vez mais sensível e atuante, tais como a violência doméstica e urbana, os direitos das pessoas com necessidades especiais, criminalidade, preconceito racial, assédio sexual, direitos dos idosos, educação, meio ambiente, etc. Essa evolução temática se justifica por duas razões principais. Em primeiro lugar, responde a uma característica intrínseca ao merchandising social: a contemporaneidade. Para ser efetivo em seus propósitos de alavancar e sustentar mudanças comportamentais junto aos telespectadores, o merchandising social deverá estar em conexão direta com as expectativas gerais da sociedade. Além disso, sua efetividade também depende da aceitação da telenovela pela audiência. Sendo a telenovela um produto de edutainment dirigido a grandes audiências, as expectativas do público telespectador também devem ser levadas em consideração. Isso implica elaborar cenas e/ou situações socioeducativas mais próximas ao cotidiano dos telespectadores, fundadas nas questões sociais que mais o preocupam, no momento. A Rede Globo e os autores de telenovelas e/ou minisséries, por sua vez, também vêm contribuindo para essa evolução ao abordar, com freqüência, temáticas modernas em suas produções . Na verdade, o trabalho em merchandising social é um outro motivo de orgulho para a Rede Globo, que lhe faz repetidas menções. Em seu Balanço Social – 1999, por exemplo, esta foi uma das atividades enfatizadas. Sob o título Responsabilidade Social na Programação, a publicação ressalta que a Rede Globo foi apontada “como um exemplo para as TVs de todo o mundo, pela qualidade e quantidade de mensagens educativas e de utilidade pública inseridas naturalmente nas tramas das telenovelas”. Com efeito, os princípios do emprego educativo e da responsabilidade social da TV encontram uma crescente receptividade nos vários escalões das áreas de gestão e produção da Rede Globo. Isso demonstra a eficácia da estratégia adotada pela Comunicarte, que em vez de criticar a TV, sem apontar alternativas para a sua evolução qualitativa, procurou estabelecer com ela uma aliança estratégica pela ética e a qualidade, tendo a abordagem conseqüente de questões sociais como eixo estruturador. 3. Edutainment: O Discurso e a Prática “Percebo que as pessoas querem ver, cada vez mais, questões sociais discutidas na TV, sobretudo se feito com sutileza. No Brasil, a novela tem uma função educativa muito importante”. Diogo Vilela Ator de Teatro e Telenovelas Desde 1995, quando sistematizou as ações de merchandising social junto às áreas de gestão e produção da Rede Globo, a Comunicarte vem consolidando importante posição na área de Comunicação Para o Desenvolvimento. Ao mesmo tempo, ampliaram-se as oportunidades socioeducativas nas telenovelas veiculadas pela Emissora. Esse processo teve seu ponto culminante em meados de 1999, com a explícita assunção do merchandising social pela alta direção da Rede Globo, que o reconheceu como uma das mais bem-sucedidas alternativas para a concretização de sua função social. É importante ressaltar que a ação educativa é, hoje, parte da própria filosofia de produção da Rede Globo. Ou seja: desenvolveu-se, na Emissora, uma verdadeira cultura de abordagem das questões sociais em todos os níveis de sua programação diária, sempre com uma clara intencionalidade socioeducativa. Entre 1995 e 2000, inclusive, houve algumas abordagens socioeducativas que se tornaram clássicas:
♦ A prevenção dos cânceres de mama e ginecológico – Por intermédio da personagem Martha (História de Amor, de Manoel Carlos, 1995), foi abordado o drama vivido por mulheres que sofrem de câncer de mama: a descoberta de um caroço no seio; o diagnóstico positivo; o tratamento inicial; a cirurgia para a retirada do tumor; o processo de recuperação física e psicológica; a necessidade de apoio da família e dos amigos. O autor deu ênfase à importância do auto-exame das mamas e da freqüência regular ao médico, como medidas preventivas.
♦ Os direitos das pessoas com necessidades especiais – Essa questão foi protagonizada pelo personagem Assunção (História de Amor, de Manoel Carlos, 1995), tendo discutido diversos problemas vivenciados no dia-a-dia pelas pessoas com deficiência física: obstáculos arquitetônicos e urbanos; atendimento à saúde deficiente; os preconceitos de que são vítimas; as dificuldades para estudar, profissionalizar-se e trabalhar. Assunção, que comandava um programa de esportes na televisão, conseguiu entrevistar até o então Ministro Extraordinário dos Desportos, Edson Arantes do Nascimento (o nosso mundialmente conhecido Pelé), que falou sobre esses problemas e suas possíveis soluções, ressaltando a necessidade dos poderes constituídos adotarem medidas que propiciem às pessoas com deficiência o exercício pleno de seus direitos fundamentais.
♦ O problema das crianças desaparecidas – Essa grave questão social foi magistralmente abordada em Explode Coração, de Glória Perez (1996), tendo-se transformado numa grande campanha nacional pelo reencontro dessas crianças com suas famílias. A abordagem foi tão bem conduzida que mereceu uma ampla reportagem de capa na revista TIME (02/06/97), que destacou: “ao fim da novela, mais de 75 crianças haviam retornado ao convívio de seus pais, como resultado da campanha”.
♦ Exploração do trabalho infantil – Com foco nos personagens Bisteca e Tico, Meu Bem Querer (de Ricardo Linhares, 1998) denunciou o problema do trabalho infantil no Brasil, por vezes, exercido em condições degradantes. O autor apontou soluções simples e viáveis para o problema (como um programa semelhante ao Bolsa-Escola, pelo qual as famílias recebiam uma cesta básica mensalmente, para manter os filhos na escola – estratégia empregada, com êxito, por diversos municípios brasileiros). Nessas cenas e/ou diálogos, o autor também transmitiu a importante mensagem de que, por meio da educação, as crianças e adolescentes podem se instrumentalizar melhor para a vida adulta, usufruindo de mais e melhores oportunidades de profissionalização e trabalho, o que deverá criar as condições para que possam superar o círculo vicioso da pobreza.
♦ Em Pecado Capital, o romance entre Vitória e seu médico (Percival), que era negro, criou várias oportunidades para que se tratasse a questão do preconceito racial. Na trama, o casal teve de enfrentar o preconceito dos familiares dela, que não queriam admitir de modo algum que Vitória se relacionasse afetivamente com um negro. Por intermédio das muitas e esclarecedoras conversas, ela conseguiu vencer as resistências de seus familiares que, enfim, acabaram aceitando Percival.
♦ Em Meu Bem Querer, abordou-se a iniciação sexual da mulher, tendo como foco o namoro entre Lara e Patrício. Apesar da insistência dele, Lara não se sentia pronta para iniciar a vida sexual, o que acabou provocando a separação do casal. Lara reflete sobre o assunto e procura Ava, com quem se aconselha a respeito da primeira relação sexual. Obtendo as informações que desejava, ela tomou a decisão de procurar Patrício, disposta a fazer sexo com ele. Consciente e precavido, ele usou camisinha e preveniu a ocorrência de uma possível gravidez não-desejada.
♦ Em Suave Veneno, tendo como foco a personagem Carlota, abordou-se a responsabilidade social dos empresários nacionais. Convidada a trabalhar na empresa Marmoreal, ela começou a gerenciar os projetos sociais e filantrópicos da empresa. A sua idéia de ajudar um orfanato agradou a todos, contribuiu para melhorar a imagem da Marmoreal junto à imprensa e serviu como exemplo para outras empresas.
♦ Em Vila Madalena, o triângulo amoroso formado por Bibiana, Margot e o aposentado Menez foi aproveitado para discutir o desejo sexual e o exercício da sexualidade na Terceira Idade. Em diferentes oportunidades, mostrou-se que pessoas idosas também têm desejos amorosos e sexuais, tendo o direito de satisfazê-los. As visitas íntimas nos presídios, tema delicado e polêmico, também foi destaque: Roberto e Pilar discutiam os direitos dos presidiários, entre os quais, o de receber visitas íntimas. Além disso, tendo Solano como foco, mostrou-se a luta de ex-presidiários para se reintegrar à sociedade e as dificuldades que enfrentam para conseguir emprego. Não vendo outra alternativa a curto prazo, Solano e Pilar criam a Oficina da Alegria, um espaço alternativo onde promoviam serestas e telegramas-animados. Esta situação, talvez, tenha servido de estímulo para milhares de brasileiros que, a exemplo dos personagens, encontravam-se desempregados. De maneira lúdica Vila Madalena mostrou que, às vezes, deve-se buscar opções não-ortodoxas de trabalho.
Link para artigo completo:
http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2002/congresso2002_anais/2002_np14schiavo.pdf