AGREGANDO VALOR SOCIAL

Revista Marketing N. 327 | Abril de 2000 
- Entrevista com Marcio Ruiz Schiavo
por Paulo Macedo

Não! Marketing social não é uma pós-graduação de alpinismo social para emergentes transitarem com maior desenvoltura nas festas da Barra da Tijuca. E uma nova atitude que está norteando o planelamento estratégico de muitas empresas, todas com um inédito e bem-vindo espírito altruísta: o de aludar o próximo. 

Um dos pioneiros da atividade é o executivo Marcio Ruiz Schiavo, pRESIDENTES da Comunicarte, fundada no início da década de 90. Antes, durante 20 anos, atuou em organizações não-governamentais. 

Transformação é a palavra-chave do marketing social. Para ajudar a alargar essa cultura, Schiavo criou no ano passado a revista Conjuntura Social, de circulação trimestral, onde as principais lideranças desse segmento propôem idéias e alternativas para melhorar a qualidade de vida no País. Além da sua empresa, Schiavo presta consultoria para o Instituto Ayrton Senna.

Paulo Macedo
Marketing - A expressão marketing passou a ser acompanhada de adjetivos como institucional, esportivo, corporativo, cultura pessoal, ambiental e até para identificar políticos de fachada. O que é o rnarketing social, base de atuação da Comunicarte, empresa que inaugurou no País há cerca de dez anos esse conceito?
Schiavo - E um processo de gestão das mudanças de comportamento na sociedade, O comportamento é o grande produto do marketing social, O que nós fazemos é o gerenciamento do processo de mudança. Para muita gente, marketing social é simplesmente fazer aparecer pelo social uma atividade empresarial.

Marketing - Como se fosse uma nova forma de mídia?
Schiavo - Essa é uma visão errada, mas muito comum. Defino como exploração da "midiséria", que é fazer mídia com a miséria alheia. Marketing social não é isso. O verdadeiro conceito é a gestão estratégica do processo de mudança do comportamento social. Por exemplo: O trabalho de prevenção à aids entre mulheres casadas, O produto é a mudança de comportamento preventivo da mulher que vive maritalmente com um homem. Usamos toda a técnica do marketing mix: produto, definição de target, preço, planejamento, distribuição, promoção, etc. Partimos da metodologia clássica do marketing para elaborarmos nossos projetos, mas com um outro tipo de apelo. No caso da mulher casada no Brasil, ela está pagando um preço muito alto pela prevenção, por isso ela não compra. Pode-se argumentar que os preservativos são baratos, mas não é bem assim, O Ministério da Saúde compra camisinhas por RS 0,034, menos de quatro centavos, por isso não se justifica que ela custe em média R$ 0,80 no comércio. Mas não é a esse preço que estou me referindo. Nesse caso, a mulher está tendo que pagar o preço da fidelidade, Quando uma mulher casada usa camisinha com seu marido há uma situação de fidelidade envolvida. E esse preço é muito alto e a mulher não quer pagar.

Marketing - O preço do constrangimento?
Schiavo - Sim, pois significa que terá que abrir a relação. As variáveis de mercado estão presentes na mudança de comportamento, mas no como um produto de consumo qualquer. Exige-se, portanto, um trabalho de muita perspicácia para que a ação seja bem-sucedida.

Marketing - Quando e corno se identifica uma oportunidade nesse incipiente mercado que contempla atividades de orientação social?
Schiavo - As oportunidades são infinitas, porque o Brasil tem uma equação a ser rcsolvida, que são as questões sociais. Nós tivemos durante um bom tempo um grande problema nas mãos: a equação política.
"As oportunidades são infinitas, porque o Brasil tem uma equação a ser resolvida, que são as questões sociais"
A partir da redemocratização, esse tema deixou de ser o número um. Entramos na conjuntura econômica: inflação, moeda, câmbio, investinientos, etc. Mesmo não estando resolvida, todo mundo sabe como inserir o País no mercado competitivo criado com a globalização. Mas esses dois vetores não refletiram a melhoria da qualidade de vida da sociedade, E claro que se morre menos do que há 20 anos, o grau de escolaridade aumentou, o nível de abastecimento de água potável é muito melhor, a rede de esgotos é maior do que era no passado, a consciência ecológica aumentou, mas, entre outros avanços, há a distância que nós temos entre um ideal de desenvolvimento e a situação que estamos vivendo. É nesse cenário que surgem as oportunidades de resgate da dúvida social brasileira.

Marketing - Como transformá-las em jobs?
Schiavo - Por exemplo, há a questão da reciclagem de aluminio, de baterias de celulares, de pilhas, de papel e papelão, que tem uma pirâmide muito desigual de distribuição de renda, O catador que recolhe esses materiais fica com uma quantidade muito pequena dos recursos, A maior parte vai para o atravessador, sem chegar à indústria. A indústria tem vantagens, mas é a figura do intermediário que monito ra o dinheiro. Por isso é preciso retormatar a dis tribuição. Com esses dados temos um briefing. Outra coisa é o papel do pai e da mãe na sociedade. Hoje a criança é escolarizada cada vez mais cedo porque falta mãe no mercado, então tem que substituir mãe e comprar mãe é caro. A criança tem que ir para creches, escolas especializadas, etc, Se ficar em casa vai ficar exposta à televisão, por isso se discute tanto o papel da TV hoje em dia, porque ela está fazendo o papel de mãe. E isso é muito dificil, principalmente quando se trata de um meio de entretenimento e de comunicação de massa. Surge aí outro briefing, que é a melhoria da qualidade da programação infantil na TV.

Marketing - Foi assim que surgiu o projeto que você define como merchandising social?
Schiavo - Sim. As primeiras conversas nessa direção surgiram na metade da década de 80, apenas como uma intenção. Observávamos movimentos deflagrados nos Estados Unidos, os chamados mídia lobbies.
Essas articulações tinha como objetivo estimular o mercado a abraçar causas sociais, Esses lobbies também mostravam que era preciso ter cuidado na hora de produzir campanhas publicitárias que estimulassem indiretamente derrubada de florestas, matança de animais, colonialismo, etc. Começaram a surgir valores nos grandes meios de comunicação americanos. A partir daí passou-se a evitar cenas com atores fumando ou danificando bens públicos, por exemplo. Ao fazer uma análise dessa tendência, resolvemos trazer o conceito para o Brasil com algumas adaptações à nossa realidade. Mais tarde vimos que no México estavam sendo produzidas novelas educativas por emissoras comerciais para sustentar campanhas sociais. Essa experiência foi tentada no Brasil, mas como os custos de produção de uma novela aqui são muito maiores que no México, não foi possível seguir esse modelo. No México, o governo era um dos principais patrocinadores dessas novelas, uma situação esdrúxula, já que não é esse o papel do poder público. Foi aí que surgiu a idéia de explorar o merchandising social na TV. Dessa forma, detecta mos oportunidades para que entrássemos com ações educativas nas novelas com o objetivo de traba lhar mudança de comportamento. Portanto, se em uma novela o ator "A" transa com várias atrizes e nenhuma delas fica grávida, fica claro que elas têm preocupações contraceptivas. Ou elas usam preservativos ou tomavam a pílula. Tivemos carta branca do presidente das Organizações Globo, Roberto Marinho, no ano de 89, para fazerrnos experiências a fim de incluir nas novelas questões educativas. Porém, só em 92 conseguimos formatar um modelo operacional junto com a Apoio de Comunicação, área de merchandising criada e dirigida por Jorge Adib.

Marketing - Qual foi o primeiro projeto?
Schiavo - Na novela Vale Tudo, a personagem vivida pela atriz Renata Sorrah era alcoólatra. Fizemos um trabalho pensado com começo, meio e fim sobre alcoolismo, Conseguimos mostrar a importância dos Alcoólicos Anônimos e o papel da família no processo de recuperação. A situação foi mostrada de forma didática, refletindo o drama de muita gente.
"Precisamos mudar muito o comportamento da elite brasileira. A população é solidária."

Marketing - Um dos trabalhos de maior repercussão foi o das Mães de Acari em busca dos seus filhos desaparecidos?
Schiavo - Na verdade, o trabalho foi da autora Glória Perez. Quem e como faz é responsabilidade do autor. O que nós fizemos é um dever de casa privado que envolve a Central Globo de Comunicação, a Comunicarte, o autor e o departamento de merchandising da emissora. Produzimos um material exclusivo para cada um desses segmentos, com apenas um exemplar. Cada um deles tem urna variação e textos de referência baseados num briefing específico. No caso da novela Vila Madalena há algumas diretrizes preestabelecidas. Nessa trama foram selecionados temas como a defesa dos direitos humanos. A questão-chave é a situação das penitenciárias brasileiras. Como o roteiro da novela prevê prisões, aproveitamos para embutir essa reflexão, de forma natural. Não interferimos no texto, mas oferecemos dicas com dados de superlotação, prevenção, cidadania, preconceito social, endereços de referência, etc. Fazemos apenas um levantamento das oportunidades socio-educativas. Se há um núcleo rural, por exemplo, podemos trabalhar a questão da qualidade da água mostrando a importância da filtragem, tratamento dos esgotos, proteção dos mananciais, etc. Na novela O Rei do Gado, o personagem Zé do Araguaia recebia uma série dc lições sobre a importáncia dos rios, São pequenas dicas que levam uma grande mensagem para a massa de telespectadora que assistem novelas.

Marketing - Como a Comunicarte se remunera quando propõe projetos como esses em parceria com a Rede Globo?
Schiavo - Nesses casos específicos não há dinheiro envolvido. É uma contribuição que achamos que devemos dar. É parte do nosso compromisso de cidadania. Se fosse assim, viraria um merchandising comercial. Toda a cadeia envolvida não tem nenhum centavo de remuneração: emissora, autor, atores, ténicos, etc.

Marketing - Que tipo de projeto dá para ganhar dinheiro com marketing social?
Schiavo - Temos a capacidade de transformar alguns sonhos em realidade. Por assim dizer, como qualquer mercadoria colocada no mercado, isso tem um valor. Muitas empresas nos procuram para conhecer os mecanismos para ingressar no mercado social. O Grupo Nacional/Iguatemi decidiu participar de projetos sociais e nos contratou para traçarmos um conceito adequado de atuação. Nossos interlocutores mostraram relatórios de contribuições para a creche da Irmã Fulana de Tal, asilo de Cicrano, jogos de futebol, etc. Ao somarmos tudo chegamos a um valor significativo. Mas esse investimento está gerando algum resultado? Essa é a pergunta que o empresário se faz em algum momento. Quando entramos, mostramos que o importante é participar e não ser um mero pagador de contas. No caso do Nacional/Iguatemi, que administra shopping centers, quando ele chega comum empreendimento, muda muita coisa na paisagem, principalmente porque ocupa grandes áreas de bairros que já acumulam muitos problemas. Ao imaginar esse espaço vazio, o empreendedor também deve vislumbrar o fluxo de emoções daquela área, porque o projeto vai mudar a geografia do local, a história e a maneira de como aquelas pessoas se relacionam com a região. Sugerimos uma postura de shopping social, que significa honrar seus compromissos trabalhistas, oferecer creches para as mulheres com filhos pequenos, pre venção de câncer, etc, Os espaços disponíveis do shopping precisam ser ocupados pelas organizações da sociedade civil próximas da sua área de influência. Os cinemas que só abrem à tarde, por exemplo, podem ser abertos para seções especiais para grupos escolares, O teatro pode ser palco para uma apresentação de um grupo jovem. Os corredores podem se tornar a galeria de exposição de trabalhos ar de uma escola de artes. O shopping precisa estar atento às oportunidades à sua volta. Ele não precisa abrir uma escola de artes para mostrar que tem vocação social. O shopping precisa estar integrado e não explorar o mercado da miséria para atender desesperados.

Marketing - É nessa hora que a iniciativa privada ganha perfil de poder público?
Schiavo - O conceito de poder público não pode ser confundido com poder governamental. Se uma questão é pública, ela é de toda a sociedade, seja educação, saúde ou cidadania. Muita gente pensa que se algo é público é problema do governo e por isso não faz nada. Como o governo é impotente, muitos problemas ficam sem solução. A sociedade precisa se conscientizar de que ela tem em mãos o poder da transformação. E deve usá-lo.

Marketing - Nos Estados Unidos várias empresas passaram a ter mais consumidores devido à sua postura socialmente correta. Em contrapartida, marcas e produtos perdem mercado por não terem programas de apoio às causas sociais. Essa tendência já está chegando ao Brasil?
Schiavo - Está e é muito bemvinda. Dois fatores ajudam a acelerar esse processo: globalização e um novo comportamento da sociedade, As pessoas do bem estão tendo que se isolar em condomínios fechados para fugir da violência. Como viver está se tornando uma coisa perigosa, estão entendendo que é preciso ter um conjunto harmônico de desenvolvimento e não ilhas de desenvolvimento. Na hora de comprar, essas pessoas têm o poder da escolha. Muitos produtos têm vários similares, o que os diferencia são os va lores agregados. Abandonar uma marca e adotar outra é bastante simples, O Instituto Ayrton Senna fez um trabalho envolvendo o Guaraná Antarctica. Cada unidade vendida ajudava um programa sério, sem que o usuário tivesse qualquer trabalho, apenas o de comprar o produto na hora que está com sede. Como agregava valor, procurou o produto da Antarctica porque concordava com a iniciativa. O mesmo acontece com os cartões de afinidade com projetos sociais. O consumidor compra do mesmo jeito, mas contribuindo com algo do bem. Isso lhe deixa mais feliz, recompensado.

Marketing - O consumidor brasileiro já está adotando essa postura seletiva?
Schiavo - Felizmente, sim. Porém, precisamos mudar muito o comportamento da elite brasileira. A população é solidária, Na hora que cai um barraco por causa da chuva há mobilização imediata. Isso não resolve o problema. Enchente, por exemplo, não é emergência porque os jornais retratam todos os anos o mesmo problema pontualmente nos mesmos lugares. Por isso acredito que a nossa elite deve uma resposta mais audaciosa à população. Sua desculpa é a de que paga o "custo Brasil" e que é o governo que tem essa obrigação. Precisam entender a ética do comprometimento.

Marketing - As empresas brasileiras, quando patrocinam ações sociais, estão de olho na renúncia fiscal ou é altruísmo mesmo?
Schiavo - Os dois casos existem. A renúncia é a maneira de o governo deixar de receber aquilo que lhe é devido, Muitas empresas criam projetos baseados apenas nesse beneficio. Mas há muitas que pensam que não podem ter um bom negócio em um mau país. Novas gerações de empresários estão iudando a mudar esse quadro. O Brasil é a oitava economia do mundo, mas está em 72° lugar em qualidade de vida. Crescer o bolo para dividi-lo depois é uma Falácia, porque desenvolvimento social não é subproduto de desenvolvimento econômico.

Marketing - Qual a diferença entre marketing social e filantropia?
Schiavo - A filantropia explica a exclusão, está na lógica da exclusão, É uma politica compensatória. O marketing social exige uma politica bem planejada que contempla mudanças comportamentais.

Marketing - A Golden Cross é um exemplo recente de empresa com certificado de filantropia, que usava esse instrumento em beneficio próprio, causando indignação na sociedade.
Schiavo - Isso é oportunismo. A Goldem Cross é uma empresa de seguro-saúde que simplesmente baixou seus custos se registrando como entidade filantrópica. Essa é uma atitude deplorável, porque os tributos descontados não beneficiavam ninguém. Felizmente o governo está sendo muito seletivo na hora de conferir esses certificados. As ONGs estão ajudando a mudar esse perfil. Muita gente que está no governo veio de ONGs e isso tem contribuí do para alterar o quadro. A solução é pensar esflate porque não se pode secar o chão com a torneira aberta.
"Uma empresa com restrição do seu consumidor toma consciência muito mais rapidamente."

Marketing - Como se mensura o resultado de uma ação de markering social?
Schiavo - O Brasil enfrenta um grande problema de evasão escolar. Se há investimentos para acabar com essa tendência, maximizam-se os recursos, porque as ações de marketing social são geradoras de capital social. Se, por exemplo, houver uma epidemia de gripe, o custo para solucionar o problema é bem alto. Mas uma ação preventiva exige uma quantidade menor de dinheiro. Uma boa política social evita custos maiores, O ganho está nessa diferença.

Marketing - O desastre ecológico na Baía de Guanabara, envolvendo a Petrobras, poderia: evitado se houvesse um programa de consciência social?
Schiavo - Repito: o produto marketing social é comportamento. No caso da Baía de Guanabara, comportamento da Petrobras não correspondia ao risco que corria, tanto que não só houve a situação vazamento como demorou-se muito a detectar o problema e a se tomar uma medida corretiva. A cultura interna não destacava isso como prioridade. O comportamento não era preparado para lidar com uma situação dessas. Além das multas, há o custo dos reparos e o custo ambiental. Uma ação educativa interna, muito mais barata, poderia evitar esse transtorno. No caso do navio da Esso, no Alasca, a empresa sofreu boicotes consecutivos. Seria muito bom que acontecesse isso aqui. Uma empresa com restrição do seu consurnidor toma consciência muito mais rapidamente.

Marketing - Por que a Shell está cortando patrocínios culturais investindo em uma linha de ações sociais?
Schiavo - Ela quer agregar novos valores à sua marca, por isso está mudando.

Marketing - Sua empresa está à frente de algum novo projeto?
Schiavo - Estamos empenhados na criação do Centro de Tecnologia Social, uma espécie de Massachussets Technological Institute (MIT) da área social. Nossa déia é tornar esse conhecimento aplicável. Muita gente tem idéias e experiêcias, mas precisa de apoio gerencial. A Fundação Banco do Brasil está abraçando essa idéia.

Marketing - É o fim dos chás beneficentes?
Schiavo - Sim.

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