MANIQUEÍSMO IMPRODUTIVO
Meio e Mensagem | Abril de 2002
Já não basta que seja pura e justa a nossa causa. A pureza e a justiça têm que existir dentro de nós."
Agostinho Neto, Poeta e líder, da luta pela independência de Angola.
Agostinho Neto, Poeta e líder, da luta pela independência de Angola.
Por Marcio Ruiz Schiavo
Ultimamente, alguns lideres do Terceiro Setor brasileiro vêm questionando a legitimidade das ações de promoção ao desenvolvimento humano empreendidas por empresas cujas atividades são potencialmente poluidoras (como as da área petrolífera) ou cujos produtos envolvem riscos à saude, a exemplo das empresas dos ramos de tabaco e bebidas alcoólicas. "Não é contraditório?!" - questionam. - "Afinal, se essas empresas desejam ser socialmente responsáveis, o primeiro passo seria parar de poluir o meio ambiente ou deixar de produzir cigarros, charutos e os vários tipos de bebida alcoólica." Dizem isso num tom de verdade cristalina, absoluta, definitiva.
Ainda que bem intencionada, tal afirmação não logra ocultar a prepotência que a impregna. Sim, porque apenas a prepotência de se julgar acima de tudo e de todos pode levar alguém a julgamentos tão definitivos. Isso é especialmente relevante quando os juízes são empresários. Por essa ótica, a responsabilidade social corporativa seria uma categoria absoluta: ou a empresa é responsável ou não é! Não há meio termo. Também não há processo evolutivo, mudanças, auto-avaliação e correção de rumos: a empresa nasce, cresce, amplia-se e atua sempre de maneira responsável, sem qualquer deslize (por menor que seja) que venha a manchar sua conduta empresarial. Por certo, não saberiam apontar um exemplo, um único exemplo, de empresa assim - perfeita. Relembrando Salvador Dali: "Não temas a perfeição, pois nós jamais a alcançaremos!"
Embora em minoria, acredito - sim - que uma empresa atuante em ramos potencialmente poluidores e/ou prejudiciais à saúde pode ser responsável. Segundo o conceito internacionalmente aceito e adotado pelo Instituto Ethos, a "responsabilidade social é uma forma de conduzir os negócios da empresa de tal maneira que a torna parceira e co-responsável pelo desenvolvimento social. A empresa socialmente responsável é aquela que possui a capacidade de ouvir os interesses das diversas partes (acionistas, funcionários, prestadores de serviço, fornecedores, consumidores, comunidade, governo e meio ambiente) e conseguir incorporá-los no planejamento de suas atividades. buscando atender às demandas de todos e não apenas dos acionistas ou proprietários". O conceito refere-se, pois, à forma de gerir o negócio; não ao produto decorrente. Em relação ao transporte de petróleo. por exemplo, talvez seja mais fácil caracterizar os dutos como fonte de risco social do que apresentá-los como condutores de progresso e bem-estar.
Claro está que, se uma empresa comercializa produtos de baixa qualidade, com defeitos de fabricação e vida útil menor que a declarada; se pratica concorrência desleal, aproveitando-se de vantagens ilícitas; ou agride o ambiente em qualquer das etapas do seu processo produtivo, ela não está sendo socialmente responsável. Mas não apenas porque os seus produtos tenham um desempenho aquém do esperado, sejam poluidores ou prejudiciais à saúde humana, mas também porque o seu processo de gestão negocial não contempla os melhores interesses dos diferentes stakeholders.
"É responsável uma empresa que produz automóveis capazes de alcançar velocidades muito acima das permitidas por lei? Ou que, vez por outra, convoca os consumidores para fazer recall de peças essenciais ao funcionamento do automóvel? Ou, ainda, que acrescenta nos veículos a serem exportados diversos itens de segurança, inexistentes nas versões destinadas ao mercado nacional? E o que dizer, então, das empresas de publicidade que 'vendem' esses produtos? Também elas seriam irremediavelmente 'irresponsáveis' socialmente ?"
Quando se foca o produto, pode-se concluir que uma dada empresa não seja socialmente responsável. É o que se faz. com freqüência, em relação às perguntas: é responsável uma empresa que produz automóveis capazes de alcançar velocidades muito acima das permitidas por lei? Ou que, vez por outra, convoca os consumidores para fazer recall de peças essenciais ao funcionamento do automóvel? Ou, ainda, que acrescenta nos veículos a serem exportados diversos itens de segurança, inexistentes nas versões destinadas ao mercado nacional? E o que dizer, então, das empresas de publicidade que "vendem" esses produtos? Também elas seriam irremediavelmente "irresponsáveis" socialmenle?
A indústria de refrigerantes que mais vende no mundo é responsável só porque, teoricamente, seu produto não faz mal à saúde? E os milhões de embalagens pet jogadas no ambiente e que permanecerão poluindo-o por muitos anos? Enfim: por que a preocupação da maioria das pessoas se volta apenas às indústrias de tabaco e álcool? Seria coerente preocupar-se, igualmente, com os fabricantes de armas, de brinquedos que imitam armas, de videogames que premiam os jogadores que mais matam, etc. A responsabilidade social é dever de todas as empresas, independentemente dos produtos ou serviços que comercializam, e devem ser cobradas por isso.
Aliás, é dever de todos nós - especialmente daqueles que ocupam posição relevante na escala produtiva. Assim, discriminar recursos destinados à área social pelas indústrias de cigarros e bebidas seria o mesmo que discriminar os impostos oriundos destes segmentos. Muitas das empresas cujos produtos podem ser poluidores ou nocivos à saúde investem em projetos de desenvolvimento humano. Buscam, assim, fazer sua parte nos esforços para superar a situação de exclusão social em que sobrevive grande parcela da população. Desqualificar essas ações ou questionar sua legitimidade não vai afetar a natureza ou qualidade dos produtos que elas comercializam nem seu desempenho empresarial. Mas poderá retrair seus investimentos sociais. E isso será um duro golpe para os grupos hoje beneficiados. Será, pois, caso típico de maniqueísmo improdutivo, cujos efeitos se voltam àqueles a quem se pretendia proteger.
Marcio Schiavo é diretor presidente da Comunicarte - Agência de Responsabilidade Social.