CONSULTORIAS DESCOBREM O TERCEIRO SETOR
Especialistas em captação de recursos, marketing, gestão empresarial, auditoria e legislação investem no atendimento às ONGs, que movimentam R$ 11 bilhões ao ano
Quando começou a prestar consultoria ao terceiro setor, em 1989, Luiz Alberto do Valle enfrentou resistência. Ao oferecer técnicas de captação de recursos, o chamado "fund raising", para que organizações sem fins lucrativos aprendessem a caminhar com as próprias pernas, ele e o sócio foram recebidos com desconfiança. "As entidades se concentravam na área fim e se esqueciam da área meio, que assegura a sua sobrevivência." Em dez anos, a mudança de atitude por parte das ONGs, cada vez mais adeptas da gestão profissional, gerou bons frutos à Neryvalle: a consultoria se tomou uma das maiores da América Latina, e deve captares este ano R$ 150 milhões, verba 131% maior que a de 1998.
Com a retirada gradativa do governo da área social, o "fund raising" é hoje o serviço mais procurado pelas organizações sem fins lucrativos. As entidades buscam novos meios para garantir a própria existência, e é nesse momento que as consultorias ganham mercado - não só na área de captação, mas também de marketing, gestão empresarial; auditoria e legislação. Importa convencer o empresariado - agora o grande doador - de que filantropia vai muito além da antiga prática de assinar um cheque: incorporada ao dia-a-dia das organizações, ela influi na imagem da empresa perante a comunidade.
"A prática social está se tomando, aos poucos, um diferencial competitivo no Brasil", diz Márcio Schiavo, da Comunicarte Marketing Social, que atende entidades do terceiro setor, como o Instituto Ayrton Senna (dono de um orçamento de R$ 13 milhões), e empresas do setor privado interessadas em investir em práticas sociais, como a Fundação Banco do Brasil. Segundo ele, as organizações sem fins lucrativos já perceberam a necessidade de focar o trabalho em um público específico, buscar doadores potenciais, de acordo com a própria área de atuação, e racionalizar operações internas, para não desperdiçar recursos. "Caso contrário, vão desaparecer".
Schiavo, que também responde pela superintendência de comunicação do Instituto Ayrton Senna, diz que um dos trabalhos da Comunicarte é reorientar a vocação da entidade. "A Fundação Banco do Brasil estava em 27 estados brasileiros, com sete campos de atuação, atendendo todo tipo de público. Começou a priorizar educação, saúde e comunidade rural, focou o atendimento à família, e passou a atuar em áreas com maior retomo de investimento social."
Já a Neryvalle atende a instituição onde ela precisa de mão-de-obra especializada, repassando conhecimentos específicos - como técnicas de telemarketing, por exemplo - para que cada uma fique responsável pela parte operacional. A consultoria se concentra no planejamento estratégico da entidade, com a criação de peças publicitárias e produtos diferenciados. "Um hospital pode 'vender' a fabricantes de cosméticos um selo desenvolvido para identificar produtos não-cancerígenos: uma ação de marketing social, que gera recursos para a instituição e serve como acelerador de vendas", diz Valle, que atende 87 ONGs, exporta know-how para a Argentina e Venezuela, e já planeja a chegada ao Chile, México e Portugal.
Os consultores, no entanto, alertam para o marketing social que tem como meta o aumento da receita. "Vender mais é apenas uma conseqüência de iniciativas sociais bem estruturadas. Não pode ser o objetivo principal, caso contrário, a ação se toma hipócrita e o consumidor percebe", diz Roberto Gonzalez, diretor da Acess Consulting, que atende o setor privado com projetos sociais, e as ONGs com técnicas de gestão empresarial. Para ele, as relações entre terceiro setor e organizações privadas se fortalecem agora, com a inibição da 'pilantropia'.
Depois da aprovação da lei 9790, de março de 1999, que define quem são as entidades sem fins lucrativos quais os seus direitos, a clientela de ONGs em escritórios de advocacia cresceu. Na L.O. Baptista Advogados Associados, ela já representa 5% da receita. "É uma área em franco crescimento", diz o advogado Eduardo Szazi, que atende o Grupo de Institutos, Fundações e Empresas, o GIFE, ONG que reúne 40 grandes organizações privadas envolvidas com a área social.
O rigor para impedir fraudes em instituições filantrópicas também rendeu à Trevisan Auditores Independentes um aumento na clientela. "Grandes organizações internacionais, como o Banco Mundial e O Banco Interamericano de Desenvolvimento, exigem o trabalho de auditorias reconhecidas, a fim de liberar recursos para as entidades", diz o sócio-coordenador Orlando Octávio de Freitas Júnior. O atendimento a fundações assistenciais, que significa hoje 10% da receita, ou R$ 2,8 milhões, deve crescer para R$ 3,5 milhões até junho do ano 2000.
No segmento de consultorias para o terceiro setor, as próprias ONGs se beneficiam ao gerar serviços. É o caso da Dialog, no Rio, uma organização sem fins lucrativos voltada à pesquisa de novas metodologias em projetos sociais - mas que cobra pelo atendimento em marketing, planejamento estratégico e capacitação de recursos. "Somos uma ONG que gera receita. A diferença em relação a uma empresa privada, é que ela divide a renda entre os acionistas, e nós revertemos todo o lucro para a própria entidade", diz a diretora Liane Marcondes, que mantém parceria com instituições internacionais de pesquisa em terceiro setor.
Para Liane, a maior consciência do empresariado em relação ao seu papel social foi a responsável pelo reconhecimento do terceiro setor este ano. "Houve um 'boom' de empresas participantes de projetos sociais e o discurso mudou radicalmente: o setor privado já não é o patrocinador, que doa dinheiro, mas investe, é parceiro na ação social". Segundo ela, quem mais incentivou essa mudança de atitude foi o instituto Ethos de Responsabilidade Social. Em um ano e quatro meses de atividade, o Ethos reuniu 220 empresas que investem no terceiro setor - superando a sua meta para o período, de 160 empresas.
O instituto, assim como o Gife, mantém uma relação de empresas que prestam consultoria voluntária ao terceiro setor. Mas segundo o presidente do Ethos, Oded Grajew, isso não impede o crescimento das consultorias privadas, também indicadas pelo Ethos. "Todo voluntariado tem limite, tendo em vista o tempo e as prioridades de cada um. A profissionalização das ONGs demanda competência específica, o que sinaliza um grande campo de trabalho".
Há quem tenha traçado os dois caminhos. Ruth Goldberg Bobrow começou como voluntária em entidades assistenciais, e hoje é consultora do Programa Voluntários, iniciativa do Conselho da Comunidade Solidária, para estimular as empresas a implantar programas de voluntariado. Ela acompanha processos de voluntariado no BankBoston (1 mil funcionários) e na Net Globo Cabo (400 funcionários), além de atuar como consultora independente em empresas, como a TV Globo.
Segundo Célia Cruz, professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV), o maior campo de trabalho para consultores acontece na área de "fund raising". "Recebo cerca de 15 telefonemas por semana, de entidades que procuram captadores", diz ela, diretora da Philantropics Assessoria de Desenvolvimento, que capta recursos para a FGV de São Paulo. A instituição vai receber investimentos de R$ 2,5 milhões este ano. Não é difícil encontrar profissionais que entraram nessa área mais por afinidade, do que perspectiva de ganhos. Marcelo Straviz, que captava recursos para projetos culturais, passou a atender ONGs. "Poderia ganhar, pelo menos, 200% mais, se ainda estivesse na área cultural". E por quê a mudança de área? "Não faz nenhum sentido para quem pensa em lucro", diz ele, que conheceu o terceiro setor trabalhando como voluntário. "É uma busca pessoal."
Empresas & Carreiras
Novembro de 1999
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Novembro de 1999