MARKETING SOCIAL NÃO É PUBLICIDADE

Jornal A Tarde | Salvador, domingo, 14/04/2002

Entrevista Marcio Ruiz Schiavo



A fronteira entre a responsabilidade social das empresas com as comunidades com que elas se relacionam e o oportunismo de ações mercadológicas em torno de barreiras humanitárias é o grande desafio do marketing social. Afinal de contas, o que leva uma copanhia a investir recursos financeiros e até a sua força de trabalho em causas comunitárias? A consciência de que a melhoria das condições de vida da população carente é um beneficio para todos ou somente a esperança de aumentar a venda de uma marca associada a uma ação de caridade?
A importância de fugir da exploração da miséria como forma de alavancar as vendas é um dos pontos desta entrevista com Marcio Ruiz Schiavo, diretor da Comunicarte, uma empresa carioca especializada em marketing social. Schiavo acredita que a maioria dos empresários tem consciência de que a ajuda a programas sociais não pode passar pelo crivo mercadológico. Confira a opinião do especialista sobre o papel que têm empresas e ONGs na construção de políticas para a área social e o que ele acha do engajamento de Organizações Não-Governamentais em matérias que constitucionalmente são atribuidas ao governo. Ele falou com exclusividade a Empregos&Mercado, depois de ter participado de banca examinadora do Mestrado Profissional da Escola de Administracão da Ufba.

P - O que deve esperar de retorno uma empresa que investe em marketing social?
R - O marketing social é uma ferramenta gerencial na área social. A promoção dos produtos sociais tem que ser entendida como uma mudança de comportamento Por exemplo: você precisa melhorar a qualidade do trânsito, O tráfego de automóveis mata muita gente, há muitos acidentes. Então você desenvolve uma atividade na educação pública para que as pessoas lidem melhor com as questões relacionadas ao trânsito: dirigir bem, andar na calçada, atravessar no lugar certo, não ultrapassar limites de velocidade,. Qual é o produto? Uma mudança de comportamento no ato de dirigir, isso é o marlceting social, trabalhar para a mudança de comportamento, Uma gestão estratégica do processo de mudança de comportamento. Você pode dar o exemplo do trânsito, o exemplo das drogas, o exemplo do cuidado nas questões da AIDS, na promoção da melhora da renda das populações que vivem na periferia. "Não importa se o produto é bom, você vai estar "vendendo" uma ajuda. Isso é uma apropriação da miséria que eu chamo "midiséria", fazer mídia própria com a miséria alheia. Isso não é marketing social.
 
P - Mas qualquer empresa que investe de alguma maneira em marketing social espera reconhecimento. Ainda que não haja um aumento direto na venda de seus produtos, mas somente a utilização daqueles selos do tipo "empresa amiga da criança" em peças promocionais faz com que essa companhia passe a ser vista com mais simpatia pela sociedade, O investimento que se faz em marketing social não tem sempre, no fundo, a expectativa de retorno?
R - Sim, O investimento social quando bem feito agrega valor à marca. Se uma organização é percebida como preocupada como meio ambiente, como desenvolvimento social dos locais onde ela atua, educação, saúde, é claro que ela vai ter a simpatia do consumidor. E essa simpatia seguramente vai levar a um melhor resultado econômico dessas organizações. Mas isso não quer dizer que se eu quero vender mais um produto vou simplesmente escolher essa maneira de ser simpático. Em geral, esse consumidor é consciente e não se deixa enganar. Então essas ações que geralmente são muito sazonais, específicas de um determinado momento, não vão dar resultado: Agora, se no decorrer do desempenho de uma determinada organização, as pessoas estão vendo que ela protege o meio ambiente, que trata bem seus funcionários, que não aceita trabalhar com mão-de-obra infantil, que apóia a escola vizinha, é claro que você vai ter orgulho dessa empresa. Você próprio passa a ser um promotor dessa empresa, que é o tipo de promoção que mais eficiência tem, o testemunhal. Muitos empresários tém percebido isso e essa tem sido a motivação para eles entrarem no mercado social. Felizmente, a maioria deles não tem o foco na utilização disso como um modismo do tipo "- qual é a atitude politicamente correta do momento? Vou me agregar a isso para continuar a auferir lucros para o meu negócio. Não, isso entra e dificilmente sai da pessoa. É uma espécie de vírus positivo, ele contamina o tecido de uma organização positivamente. Dificilmente ele vai ser o mesmo. É muito diferente de ele estar aprovando. uma campanha para o dia das mães. Quando ele faz uma campanha sobre a prevenção do câncer isso realmente marca. Não é uma coisa que, na semana que vem, ele vai estar procurando qual é calendário promocional da vez. Geralmente, as agências publicitárias não sabem atender esse tipo de campanha porque elas trabalham muito em função de criar qualidade onde não tem. Enquanto que nesse caso dar visibilidade ao que vem dando uma contribuição à sociedade de uma maneira geral. O grande resultado é a melhoria da sociedade como um todo.

P - Iniciativas de grupos privados de desenvolver trabalhos sociais desse tipo às vezes - resvalam para o preenchimento dé uma lacuna deixada pela ausência de políticas públicas. Como o senhor analisa o desempenho de empresas e ONGs que de alguma fórma tentam ocupar o lugar do Estado? Isso não libera o governo de algumas obrigações que seriam dele?
R - É preciso separar uma coisa da outra. Se uma ONG está substituindo o governo ela está agindo mal, equivocadamente. Está fazendo uma ação substituta. Lá na frente ela vai chegar à conclusão de que errou. Vamos imaginar um caso concreto. O governo não está dando escola para uma determinada comunidade e então uma ONG vai lá e organiza uma escola. Aí, essa escola cresce, dá certo. Matricula crianças, elas aprendem, passam de ano, etc. Então é um exemplo positivo. Aí ela abre outra escola, depois outra. No final da história, ela se dá conta de que tem que haver uma secretaria de Educação para tomar conta da escola dela. Ela não tem como crescer sem virar governo, porque ela está substituindo a ausência do poder público. Ela tem que trabalhar complementando ações públicas, abrindo caminho para que algumas ações se transformem em políticas quando isso não ocorrer. Por exemplo, defender uma política de cotas para a população portadora de deficiências, para as minorias, porque isso ainda não virou lei. Criar uma situação que, com o passar do tempo, se torne uma legislação que todos cumpram. Cabe então uma ação indutora de uma atividade que você quer transformar em política pública. Agora, pensar assim, "ah! O governo não está cuidando da saúde e então nós vamos fazer isso. Você está evidentemente fazendo algo que seria obrigação constitucional do Estado. Não recomendamos isso. Por outro lado, se a ONG não substitui o governo ela vai fazer o quê? É preciso ver que algumas situações só serão solucionadas com a participação do público. Mas público não é sinônimo de Estado. O governo é uma estrutura hierarquizada em níveis federal, estadual e municipal que cumprem finalidades especificas, devem fazê-lo bem e nós devemos cobrar esse bom cumprimento. Agora, na medida em que o governo diminui de tamanho (por conta da privatização de serviços como energia e telefonia, por exemplo), quem comprou essas coisas (as estatais e seus serviços) comprou junto as responsabilidades que antes eram só do governo. O que era um patrimônio público, depois de privatizado, não deixa de ser um patrimônio público. Além disso, você têm que entender que as ações que demandam um posicionamento público requerem trabalho em conjunto com forças presentes na sociedade: empresas, ONGs, cooperativas. O público é a soma dessas coisas. Isso ficou muito claro na questão da dengue. Se a epidemia for gerenciada apenas pelo Estado não há soluções possível. Precisa envolver as pessoas, as famílias, a televisão. As emissoras tem que botar anúncio de graça, porque não é hora de elas estarem ganhando dinheiro para isso. Elas têm que proteger a sociedade elas tem papéis a serem cumpridos. Está em jogo a saúde coletiva. As pessoas têm que dizer: da minha casa, eu vou tomar conta. É preciso uma mobilização para se criar um ambiente desfavorável à prolivestação. Se a gente criar condições em que o analfabetismo desfavorável à baixo remuneração, ela não será possível. Acelerar esse processo é um grande papel das organizações não-governamentais.

P - O senhor falou em criar um ambiente desfavorável à baixa remuneração e anteriormente mencionou o estabelecimento de cotas para minorias étnicas. A fundação Ford mantém um programa de concessão de bolsas de mestrado e doutorado que privilegia, no Brasil, negros e índios. Por outro lado , a ford paga a um metalúrgico aqui na Bahia cerca de um terço do que se paga a um trabalhador desse nível em São Paulo. Como fica isso do ponto de vista do marketing social da empresa?
R - Não fica. Não é compatível, mas é mais complicado do que parece. A rigor, a Fundação Ford não tem nada a ver com Ford. Já teve. Se dependesse da fundação Ford estaria tendo um comportamento diferente do que tem. Hoje, elas são instituições autônomas, independentes. Essa questão se aplicaria da Fundação Ford para a Ford, como se aplicaria da Fundação Ford para outra montadora qualquer. Não são os mesmos gestores não são as mesmas consciências. São instituições que supostamente estão fazendo o melhor para o desenvolvimento, dentro dos seus campos. São outros fatores que levam a essas diferenças. As negociações para a localização de uma fábrica infelizmente deixam a desejar. O governo abre mão de impostos, faz estrada de graça, cria incentivos que transformam a implantação da fábrica em um leilão a mão-de-obra que é mais barata.

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